segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Post nº 19

AÉCIO  UNIFICA  OS  EXÉRCITOS  OCIDENTAIS  E  ATACA  ÁTILA  
Enquanto Átila assolava a Gália quase sem encontrar resistência, Aécio tentava coligar as potências
ocidentais para enfrentá-lo numa batalha decisiva (451 DC)


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No início de abril de 451 Átila atravessou o rio Reno na confluência do rio Necker e devastou o nordeste da Gália como uma praga. Aécio ainda estava em Lion organizando o exército com as poucas legiões que dispunha e os seus aliados burgundos tentaram sozinhos deter o invasor, mas foram derrotados e o seu rei Godofredo foi morto na batalha. Por isso os combatentes restantes retiraram-se para os vastos pântanos do baixo Reno e uniram-se aos francos de Meroveu na Bélgica.

Após essa significativa vitória inicial de Átila, as poucas legiões couraçadas de Aécio limitaram-se a lutas de guerrilhas contra o feroz inimigo, pois os 50.000 galo-romanos, mesmo contando com os 40.000 mil franco-burgundos de Meroveu, com os quais ainda não haviam feito junção, não teriam como enfrentar em campo aberto os 200.000 cavaleiros de Átila, mais do dobro do que Aécio reunira até então.

Quando Átila arrasou Trier em maio, Aécio viu que o momento da verdade se aproximava e raspou o fundo do tacho, chamando ao continente a última grande legião ainda aquartelada na Britannia. Dessa forma, aumentou substancialmente o seu poderio militar, mas deixou a ilha sem qualquer proteção. Ele estava tendo sérios problemas para concluir as alianças que lhe permitiriam enfrentar Átila em uma batalha decisiva, pois Teodorico, rei dos visigodos, não havia superado as divergências que ambos tinham tido no passado, apesar das posteriores demonstrações em contrário. Assim, Teodorico declarou que só combateria os hunos se eles atacassem o seu reino no sudoeste da Gália.

Os visigodos eram fundamentais, não somente pelo seu grande e bem organizado exército, mas porque várias tribos germânicas menores esperavam eles se definirem para só então escolherem o lado onde lutar. O apoio de Teodorico traria cem mil guerreiros à coalizão e definitivo equilíbrio de forças, permitindo a decisiva batalha em campo aberto.

Em desespero, Aécio apelou para o príncipe galo-romano Avito, homem rico e refinado que gozava da amizade dos dois. Avito aceitou a missão e, como bom diplomata, disse ao rei que se Átila vencesse Aécio as tribos germânicas adeririam em massa ao vencedor, pois ninguém quer ficar do lado perdedor. Quando Átila atacasse os visigodos, estaria com força dobrada e eles sem aliados. Finalmente Teodorico curvou-se à lógica dos fatos e aderiu à aliança.

O riquíssimo príncipe galo-romano Avitus era amigo pessoal de Aécio e Teodorico e fez este aderir à
aliança contra Átila. Mais tarde seria imperador e acabaria assassinado (457 DC)

Enquanto isso, Átila destruía a corajosa cidade de Metz após ela se recusar a render-se para ser saqueada e ter suas mulheres violentadas em troca da vida da população. A recusa da “generosa oferta” e a sua épica resistência provocou em Átila tal acesso de fúria que ele ordenou não somente o saque da cidade e o estupro das mulheres, mas também a sua destruição e o extermínio de todos os seus habitantes.

O mesmo aconteceu em Tongres, mas Toises e Paris escaparam após lhe pagarem valiosos resgates e curvarem-se humildemente ao seu poder.

No interregno de suas terríveis façanhas, ele se pavoneava, rindo e troçando diante do seu estado-maior: “Onde está o bravo Aécio? Por que ele não aparece e luta como homem? Por que está se escondendo como um rato? Por que não está cantando como um galo? Mas eu sei a razão da sua covardia: isto se deve ao fato dele ter virado uma galinha depois que a bruxa Placídia, que agora está no inferno, o castrou”! Os generais hunos, muitos deles conhecendo bem Aécio, riam para agradar o brutal tirano, mas no íntimo sabiam que o jogo estava só começando. Mais cedo ou mais tarde "o tigre mostraria as suas garras"!

Em junho, após receber polpudo resgate para poupar Paris, Átila marchou para o sul e cercou a estratégica cidade de Orleans nas margens do rio Loire. A cidade resistiu bravamente sob o comando espiritual e político do valente bispo Aignan, que na igreja, nas ruas e nas muralhas encorajava o povo a lutar contra os invasores pagãos. A igreja onde o heróico bispo discursava eloquentemente aos fiéis ainda existe e hoje é anexa a um seminário junto aos restos das antigas muralhas.

Meroveu, rei dos francos, era tradicional aliado de Aécio e esteve ao seu lado desde o início da
campanha. Auto relevo em bronze de Jean Dassier (1720)

No início de julho, Aécio concluiu os termos finais da coalizão e o seu exército juntou-se ao exército visigodo de Teodorico e ao exército franco-burgundo de Meroveu, assim como também aos muitos batalhões das tribos menores que somente decidiram lutar ao seu lado depois da adesão de Teodorico à aliança. Tendo agora um imenso exército e o apoio dos poderosos reis Teodorico e Meroveu, Aécio marchou sobre Orleans, onde esperava encurralar Átila contra as altas muralhas da grande cidade cercada que resistia bravamente ao seu assédio. Mas Átila era astuto e não daria chance a Aécio, que conhecia desde menino e cujo valor militar respeitava: somente lutaria no momento que desejasse e no campo que escolhesse! Por isso levantou o cerco de Orleans e retirou-se para o leste.

Aécio contava agora com duzentos mil homens, o mesmo número do gigantesco exército de Átila, mas ele tinha uma grande vantagem: as suas dez legiões couraçadas que, apesar de constituírem apenas um quarto do imenso exército aliado, eram treinadíssimas e agiam como uma máquina no campo de batalha. Embora fossem "romanas" no nome, na verdade eram compostas quase inteiramente por soldados profissionais gauleses, germânicos, britânicos, ibéricos e balcânicos; isto mostra que na época a Itália deixara de produzir soldados para produzir apenas burocratas. Por isso é estranho que ainda permanecesse à testa do Império. De qualquer forma, Aécio não perdeu tempo com as festividades pela libertação de Orleans e partiu célere em perseguição de Átila.

A hora da decisão chegara!


Notas:

1) o número de tropas envolvidas no gigantesco confronto, tendo de um lado os aliados romanos Aécio-Meroveu-Teodorico e do outro lado os aliados bárbaros  Átila-Arderico-Clodion são os citados pela maior parte dos historiadores, mas as possibilidades logísticas da Gália na época os tornam por demais exagerados. Os antigos gostavam de aumentar desmesuradamente os combatentes das batalhas importantes e por isso a metade, ou mesmo um terço, dos números citados seja mais razoável.

2) Aécio e Átila se conheciam desde a adolescência e tinham sido aliados no passado. As ligações entre os dois eram antigas, pois Aécio residira como refém na Hungria durante dois anos na corte do rei huno Roua (também chamado Rugila), tio de Átila. Este, por sua vez, também residira como refém em Ravena na casa do general Gaudêncio, pai de Aécio. Ainda jovens participaram juntos de algumas campanhas militares e o radical rompimento entre  ambos na maturidade jamais foi bem explicado.

3) Calcula-se que cerca de vinte nacionalidades europeias participaram da batalha, de um ou do outro lado. Porém a grande maioria combateu com batalhões inferiores a mil homens. Os maiores contingentes nacionais foram os hunos, hérulos, ostrogodos, alanos (divididos), gauleses, visigodos, francos (divididos) e burgundos. Por isso a Batalha dos Campos Catalúnicos é também chamada de "A Batalha das Nações".


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Post nº 18

ÁTILA  INVADE  O  OCIDENTE  E  AÉCIO  MARCHA  PARA  COMBATÊ-LO

Fantasia cromática do autor. Tradução do latim: "Fávio Marcelo Aécio vencedor
de Átila rei dos hunos. Cavaleiro velocíssimo e exímio atirador de flechas"


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Enquanto Aécio passava o inverno de 451 em Florença, tentando superar a dor causada pela morte recente da imperatriz Placídia, a sombra terrível de Átila crescia e ameaçava se estender por toda a Europa. Em janeiro Aécio recebera ameaçadora mensagem do rei huno reiterando suas exigências e, como se zombando do antigo aliado e amigo, exigindo também a mão de Honória, irmã do imperador Valentiniano. O general tentara contemporizar mandando-lhe um embaixador carregado de presentes numa perigosa viagem em pleno inverno, mas este voltara apressado trazendo apenas respostas vagas e novas ameaças.

Fantasia cromática do autor. Tradução do latim: "Galla Placídia imperatriz
                            católica fidelíssima e grande defensora da fé cristã"


Todavia, certo de que Átila somente atacaria no verão, resolvera adiar o assunto para o início da primavera. Até porque as suas alianças com as tribos germânicas eram muito fortes e elas temiam Átila mais do que ao próprio demônio. Qual não foi sua surpresa quando ao voltar de Florença em meados de março o Serviço Secreto lhe apresentou um relatório aterrador sobre a real situação militar. O rei huno não descansara durante o inverno e, após cruzar o rio Danúbio e atravessar velozmente a Germania com dezenas de milhares de homens, estava agora concentrando o seu imenso exército na margem direita do médio rio Reno, ao sul do país dos burgundos, aliados dos romanos.

Nos últimos trinta dias Arderic, rei dos gépidas, Valamir, rei dos ostrogodos, e mais os reis dos boius, alamanos, hérulos, pomeranos e turíngios tinham se alistado sob a bandeira de Átila, o que significava todas as tribos germânicas do leste. Para completar o desastre, o seu compadre Clodion, rei dos francos, morrera e deixara o trono para os seus filhos Meroveu, protegido de Aécio, e Clodion, que tinha o mesmo nome do pai e odiava o irmão. Os dois tinham brigado e a coroa ficara para Meroveu, graças à intervenção do seu protetor Aécio. O derrotado Clodion fugira para o leste com milhares de seguidores e depois criara um exército franco independente, alistando-se sob a bandeira de Átila. Em resumo: os povos germânicos, valiosos aliados de Aécio, estavam completamente divididos!

O imperador Valentiniano foi imediatamente avisado do perigo e o senado foi convocado às pressas para deliberar, mas Aécio ficou perplexo ao ver que a maioria dos apavorados senadores era favorável a que se concedesse a Átila tudo o que ele exigia.

Exceto as suas riquezas pessoais, é claro!

Quando percebeu que aquela turba de canalhas aristocratas só se importava com suas propriedades e fortunas individuais, preferindo perderem os dedos para salvarem os anéis, Aécio discursou-lhes eloquentemente: “Assim que Átila tiver a Germânia sob seu controle e conquistar a Gália, avançará sobre a Itália, onde estão dois terços das riquezas do império. Todas as cidades italianas serão destruídas, as casas dos cidadãos serão saqueadas e as férteis terras da península serão transformadas em pasto para os rebanhos hunos de carneiros e cavalos. A única forma de tentar evitar o desastre é lutar agora, enquanto ainda temos o apoio dos gauleses e de parte das tribos bárbaras, especialmente dos poderosos visigodos de Teodorico e dos bravos francos de Meroveu. A escolha dos senhores é simples: lutar agora, enquanto temos esses valiosos apoios e talvez salvarmos nossas riquezas, ou lutar depois sem qualquer apoio e perdermos tudo. Escolham”!

"Átila, rei dos hunos, flagelo de Deus". Fantasia cromática do autor. Há
                medalhões e moedas com a sua efígie, mas não se sabe se são fiéis

O argumento de salvar as riquezas dos aristocratas foi decisivo e uma escassa maioria de mesquinhos senadores deu a Aécio os recursos financeiros necessários para enfrentar Átila. Dizemos meios financeiros porque a Itália praticamente deixara de produzir soldados e quase todo o exército romano era formado por mercenários estrangeiros de dentro e de fora das províncias do império.

Informado de que o seu temido ex-aliado iria à Gália combatê-lo, Átila lhe propôs secretamente dividirem o império: o rei huno ficaria com a Germânia, Gália, Espanha e Britânia; o general romano ficaria com o que restasse: Itália, Sicília, Bálcãs e Grécia. Mas Aécio recusou o astuto oferecimento porque sabia que tão logo Átila eliminasse seus aliados germânicos e gauleses no oeste voltar-se-ia para o sul e esmagá-lo-ia na Itália, onde estaria sozinho e sem os valiosos apoios com os quais ainda contava no momento.

No início de abril Aécio se pôs em marcha com o pequeno exército que conseguira formar a duras penas. A guerra contra o terrível Rei dos Hunos ia começar!





sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Post nº 17


OS  REAIS  MOTIVOS  DO  ASSASSINATO  DE  AÉCIO - ÚLTIMO DOS GRANDES GENERAIS  ROMANOS

Aécio e Placídia representados por atores famosos em recente filme sobre Átila


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Na qualidade de Regente e tendo Aécio como ministro, exceto por alguns intervalos, Placídia governou o Império quatorze anos na menoridade do seu filho Valentiniano. Quando este foi coroado em 440 (A maioria dos historiadores diz que foi em 437), ela ficou mandando por trás do trono e Aécio continuou ministro. Em 450 ela morreu e Valentiniano assumiu o poder pleno, mas manteve Aécio no cargo até assassiná-lo em 454. Contado o tempo de jovem oficial, quando era um protegido do imperador-adjunto Constâncio, podemos dizer que Aécio andou pelo palácio imperial durante mais de trinta e cinco anos. Curiosamente, esta era a idade de Valentiniano na época do assassinato!

Placídia, embora muito mais moça que o marido, era um pouco mais velha que Aécio, mas a sua beleza e elegância fazia-os parecer terem a mesma idade. Não se sabe o tipo de relação existente entre eles antes da morte de Constâncio, e nem mesmo se existia alguma, mas quando o secretário João usurpou o trono, pondo de lado a viúva Placídia e o pequeno Valentiniano, o jovem general Aécio FICOU NEUTRO, embora alguns digam que apoiou João e só não combateu em seu favor porque estava entre os hunos buscando formar um exército para apoiá-lo. Todavia nem a lógica nem o desenrolar dos fatos apoiam a versão do seu "apoio" a João!

Quando João foi morto por seus próprios soldados e Placídia voltou, Aécio finalmente veio com suas tropas e ocupou a capital, deixando a imperatriz isolada no palácio com a sua guarda. A superioridade militar de Aécio era enorme e todos esperavam que ele se proclamasse imperador, mas os dois tiveram uma longa conversa a sós e Aécio informou seus partidários que estava tudo acertado: a imperatriz continuaria no trono e ele seria governador da Gália e seu ministro! Ambos trabalharam juntos durante anos e tiveram brigas homéricas que sempre acabavam da mesma forma: Aécio se afastava, passado algum tempo voltava à frente de um grande exército e Placídia ficava isolada no palácio. Depois de longas conversas a sós ele dizia que o dissídio fora superado e as coisas voltavam a ser como antes.

Átila, o rei dos hunos, visto aqui na célebre ópera "Attila" de Giuseppe Verdi, foi o grande rival militar do grande general romano Aécio, que o derrotou em 451 na Gália e em 452 na Itália

Os detalhes mudam conforme o narrador, mas na essência era isso o que acontecia. Daí os historiadores devotos dizerem que a imperatriz e o ministro eram “inimigos cordiais” que colaboravam por razões estritamente políticas e não por secretas razões sentimentais. Apesar dos boatos, desmentidos pelo fato deles não terem se casado quando Aécio também era viúvo, há sólidas evidências de que Placídia tinha relevantes motivos pessoais e políticos para não casar, que expomos em nosso livro “Memórias Íntimas de Flavius Marcellus Aetius” e resumiremos aqui.

Aécio era de origem rica e aristocrática, pois seu pai, apesar de cita de nascimento, era cidadão romano e um dos mais notáveis generais imperiais, tendo sido governador da Ilíria, conde da África e comandante-em-chefe da cavalaria do exército. Sua mãe pertencia à alta aristocracia romana de Milão, na época capital do Império do Ocidente, sendo o seu avô materno importante ministro na corte imperial. Mas ao contrário dos demais militares nobres, que adoravam sinecuras e evitavam batalhas, Aécio estava sempre na linha de frente. Quando criança, vivera entre os visigodos, cujo rei Alarico era seu padrinho, e já adolescente fora refém na corte dos hunos. Isto o fez aprender-lhes o idioma e conhecer a fundo seus armamentos e táticas militares, assim como fazer sólidas amizades. Bom diplomata e poliglota, se tornou amigo do rei dos hunos Roua, do rei dos francos Clodion (era padrinho do seu filho Meroveu), do rei dos burgundos Godofredo, do rei dos visigodos Teodorico e de vários outros reis e príncipes de povos chamados “bárbaros” pelos romanos, mas cujos idiomas e culturas Aécio conhecia e respeitava. Isto lhe deu estatura de líder europeu, mas lhe causou sérios problemas na Itália. Sobretudo porque não mostrava muita devoção religiosa. A aristocracia desconfiava da sua íntima ligação com os bárbaros, o clero suspeitava da sua fé (seus aliados visigodos eram heréticos arianos e os burgundos, francos e hunos eram pagãos) e o povo suspeitava dele pelas duas coisas. Ademais, o seu valor militar, bravura pessoal e índole explosiva criaram-lhe muitos inimigos que o chamavam de “caudilho ambicioso e turbulento”. Este conceito era partilhado por quase todos, exceto pelo exército, onde tinha grande apoio devido à lealdade dos seus soldados. Só depois que eliminou os seus rivais Bonifácio e Félix, generais devotos amados do clero e da aristocracia, é que ele solidificou-se no poder e Placídia parou de lhe criar problemas. A partir de 433, governou como bem quis, mas sempre ao lado dela até a sua morte. Depois disso, governou ao lado de Valentiniano até ser assassinado.

Placídia era uma raposa política e certamente via na má-fama de Aécio e na possível substituição de Valentiniano por um filho dele no caso de um matrimônio, sérios obstáculos para que ele acontecesse. Também o seu apego ao poder a impedia de entregá-lo por inteiro ao general, pois sabia que se o fizesse ele não mais seria manobrável e poderia pô-la de lado quando bem quisesse. Os favores dela à Igreja e o seu empenho em construir mosteiros e templos fez o clero considerá-la uma “santa”, e, como quase todos os historiadores da época eram clérigos, esforçaram-se ao máximo para preservar a reputação da sua protetora. Sobretudo quando esta poderia ser manchada por um suposto caso com o caudilho Aécio. O resultado é que não há registros dos boatos, que certamente existiam, dado o empenho que empregam na defesa da reputação da imperatriz. Se não existiam os boatos, então por que o empenho em negá-los? É possível que o raciocínio dos clérigos fosse o de que historiadores sérios não devem registrar boatos e maledicências. Por isso foi a versão deles a que prevaleceu: Aécio e Placídia eram inimigos cordiais que colaboravam por razões estritamente políticas!


Placídia era bonita e muito culta. Enviuvou pela 2ª vez  aos 32 anos e é difícil acreditar
que tenha permanecido casta pelo resto da vida

A falta de razões racionais para o covarde assassinato de Aécio, que eliminou o último obstáculo político e militar que precariamente preservava Roma das invasões dos bárbaros, ao nosso ver só pode ser atribuído ao insano ciúme incestuoso de Valentiniano, que obtendo a certeza, talvez falsa, de que, longe de serem apenas "aliados", Aécio e Placídia eram na verdade amantes, resolveu "lavar com sangue" a honra da sua adorada mãe já falecida. A insanidade política e militar do ato torpe de Valentiniano foi tão evidente que durante muito tempo se disse em Roma que ele agira "como o louco furioso que corta a sua mão direita com a sua mão esquerda"! Dado o seu caráter psicopático, é até mesmo possível que ele se tenha julgado filho adulterino de Aécio e, tal como uma reedição tosca e perversa do Édipo da mitologia grega, tenha matado por ciúme da mãe aquele que julgava ser seu pai. Isto nada tem de absurdo à luz da moderna criminologia, que está recheada de casos semelhantes, e foi exaustivamente explicado pela psicanálise freudiana.

Devido à fragilidade das outras versões, tanto da oficial como das alternativas, a única que faz sentido é a versão apresentada acima. Portanto, o CASO AÉCIO continua sendo um mistério para os historiadores porque eles repetem o que outros disseram e não buscam versões lógicas para fatos que parecem inexplicáveis. Como dizia o detetive Sherlock Holmes ao seu amigo Watson: "Se as hipóteses existentes são implausíveis, a verdadeira é aquela em que ninguém pensou antes”!


Nota: Aetius no latim clássico pronuncia-se  Écius e no latim vulgar Aécius. Em italiano é Ezio e em português é Aécio. Embora exista um quadro de Placídia com os filhos, não existe nenhum de Aécio. Os bustos e pinturas que se supõe serem dele são também atribuídos ao general Stilicon.


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Post nº 16
POR  QUE  VALENTINIANO  III  MATOU  AÉCIO,  ÚLTIMO  DOS  GRANDES  GENERAIS  ROMANOS ?

Átila fora a grande ameaça durante o governo de Aécio. Tela de Eugene Delacroix (séc. XIX)
 
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As afirmações de que os motivos que levaram ao assassinato de Aécio são um mistério e de que a existência de uma ligação amorosa entre o general e a imperatriz Placídia é mais do que uma hipótese, continuam a suscitar debates entre os historiadores até hoje. Em nosso romance histórico Memórias Íntimas de Flavius Marcellus Aetius atribuimos o crime a uma explosão de loucura edipiana do imperador ao descobrir que Aécio e Placídia tinham sido amantes e ele poderia ser filho do ilustre general, coisa que de modo algum está fora de questão, pois a história mostra que pouquíssimos foram os crimes praticados nos recessos das cortes cujos motivos tenham sido unicamente "altas razões de Estado".

A História lida com os fatos e as suas versões, e estas são de três tipos: a versão oficial, a versão alternativa e a versão lógica. Costumamos lidar com as três, mas devemos sempre dar preferência à versão lógica, sobretudo quando as outras são insatisfatórias ou mesmo implausíveis.

No Caso Aécio a versão oficial é a do assassino. Como já vimos nas razões de Aureliano contidas no post anterior, ela é completamente IMPLAUSÍVEL e não merece ser levada em consideração.  Portanto, passemos às versões alternativas, que são duas: 1ª) Houve uma grave discussão entre os dois por causa das altas despesas militares: ambos se atracaram e Valentiniano apunhalou Aécio; 2ª) A mesma coisa, só que o motivo da briga foi o imperador acusar o general de querer aproveitar-se do casamento entre os seus filhos para colocar o jovem Gaudêncio no trono logo que o matrimônio se realizasse.

Estas versões alternativas são tão IMPLAUSÍVEIS quanto a versão oficial, porque Valentiniano era um irresponsável que não cuidava da administração e, em um Império continuamente atacado por invasores bárbaros, altas despesas militares eram mais que justificáveis. Quanto ao casamento, ele fora ajustado com este objetivo, pois tendo somente filhas Valentiniano queria ser sucedido por um genro com suficiente respaldo militar para tornar-se futuramente imperador e fazer sua filha imperatriz, gerando-lhe um neto que daria continuidade à sua dinastia. Do ponto de vista político e militar nada mais acertado que este genro fosse o filho do nobre e fiel general que durante décadas garantira a permanência dele e da mãe no trono imperial. Ademais, Aécio jamais poderia ser apunhalado por Valentiniano no caso de uma briga, pois era rijo guerreiro altamente versado nas artes marciais. Apesar de ser vinte e dois anos mais moço, Valentiniano era um bêbado indolente que jamais pusera os pés num campo de batalha e cuja única habilidade era o jogo de azar; mesmo desarmado, Aécio facilmente o dominaria. Assim, ele só poderia pegar o general se ele estivesse desprevenido e de surpresa, como realmente aconteceu.  

Verifica-se, portanto, que tanto a versão oficial quanto suas alternativas não se sustentam no que se refere aos motivos e por isso são IMPLAUSÍVEIS.

Resta a versão lógica que adotamos no livro Memórias Íntimas de Flavius Marcellus Aetius

O maduro general e imperador-adjunto Constâncio morreu quando Valentiniano era criança e por isso ele não deve ter conhecido o pai. Na época, Aécio era um bravo e jovem oficial da alta nobreza militar, filho do prestigioso general Gaudêncio e protegido de Constâncio, que o fizera general aos vinte e poucos anos de idade. Era também afilhado do falecido Alarico, rei dos visigodos que ocupou Roma em 410. Não tendo filhos, ele tratava Aécio como tal e este deve ter conhecido Ataulfo, sobrinho do seu padrinho (alguns dizem que era cunhado e outros que era primo), depois também rei dos visigodos e primeiro marido de Placídia, irmã do imperador Honório. As ligações de Aécio com a família imperial, portanto, datavam de longe e eram bastante estreitas.

O Imperador Valentiniano III assassinou Aécio traiçoeiramente em uma reunião ministerial


Algum tempo depois da morte de Constâncio ele se tornou ministro da bela imperatriz, agora viúva pela segunda vez e regente do império na menoridade do filho único, o qual ela tratava com desusado carinho mesmo quando já era ele adolescente. Isto criou boatos sobre uma possível relação incestuosa entre mãe e filho, coisa certamente inverídica, mas é provável que o seu exagerado amor maternal tenha mexido com a mente doentia de Valentiniano e causado a tragédia quando, muitos anos depois, ele descobriu a verdadeira natureza da longa e íntima colaboração política entre Aécio e Placídia, já falecida na época do crime.

Os sólidos indícios de uma relação amorosa entre eles, assim como as razões de ter sido a relação mantida oculta pelos dois e pelos devotos historiadores da época, pois Placídia gozava de imenso prestígio religioso e era considerada quase uma "santa" pela Igreja, são assuntos ainda carentes de investigações mais detalhadas devido a pobreza historiográfica do século V.


quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Post n° 15

O  ASSASSINATO  DE  AÉCIO -  ÚLTIMO
DOS  GRANDES  GENERAIS  ROMANOS

Retrato idealizado de Aécio (Aetius), cognominado "O Último dos Romanos"


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Em 454 o imperador Valentiniano III assassinou durante uma reunião ministerial o general Flávio Aécio (Flavius Aetius), comandante-em-chefe do exército romano e último baluarte às invasões bárbaras que vinham de todos os lados e destruiriam o Império alguns anos depois. O crime e as perplexidades que ele gerou foram abordados no Diário de um nobre amigo seu no trecho que transcrevo abaixo.


Aécio está morto!

Hoje recebi a terrível notícia do seu assassinato cometido traiçoeiramente pelo imperador Valentiniano, quatro anos após a morte de Placídia e onze meses depois da morte de Átila. É tão absurdo que mal posso acreditar; porém amigos próximos já me tinham advertido dos perigos que cercavam Aécio na corte imperial.

De acordo com o relatório enviado pelo general Clavinus, comandante legionário na Gália, Aécio participava de uma reunião ministerial no palácio e havia terminado o seu relatório sobre a situação militar do império. O imperador felicitou-o pelo excelente trabalho, levantou-se e o abraçou sorridente sob os aplausos dos demais ministros.

Aécio protagonizado por Thomas Todd na ópera "Ezio" (nome italiano de Aécio) de Friedrich Häendel

Aécio estava desarmado, em trajes senatoriais, e quando o falso abraço terminou ele virou-se para agradecer os aplausos recebidos. Aproveitando a oportunidade, Valentiniano sacou um punhal e golpeou seu ministro pelas costas diante dos olhos aterrorizados dos demais. Atingido no coração, Aécio morreu sem saber o que se passava.

Para justificar sua covarde atrocidade, Valentiniano e seus cúmplices emitiram uma declaração dizendo que Aécio planejava um golpe de estado para apoderar-se do trono e vários dos seus amigos e auxiliares foram presos e executados.

A justificativa é absurda porque todos sabem que se Aécio quisesse o trono o teria tomado muitos anos antes, pois teve várias oportunidades para se tornar imperador e delas nunca se aproveitou. Por que iria ele tentar isto agora, já na velhice e às vésperas da aposentadoria? A razão sugerida por um sábio amigo de que Aécio se tornara supérfluo aos interesses da oligarquia romana depois da morte de Átila é insuficiente, porque além dos laços políticos também havia outros fortes laços entre ele e Valentiniano desde os tempos de Placídia, reforçados ano passado pelo noivado da filha mais nova do imperador com o seu filho Gaudêncio.

É bem verdade que enquanto Átila estava vivo ele era indispensável porque era o único general romano capaz de lidar com o rei dos hunos, seu antigo aliado e depois adversário. Afinal de contas, Aécio derrotara Átila duas vezes, tanto durante a invasão da Gália em 451 como da Itália em 452. Ninguém na Europa seria capaz de tal façanha, mas de acordo com a teoria uma vez morto Átila a ameaça desapareceria e Aécio tornar-se-ia dispensável.

De qualquer forma, mesmo com a morte de Átila, outra ameaça continuava presente no sul, pois todos sabem que Genserico, rei dos vândalos, há muito vem se preparando para invadir a Itália partindo de suas bases no norte da África.

A morte de Aécio deixou Roma indefesa e Genserico um ano depois a invadiu e saqueou

Ele não atacara antes devido ao imenso respeito que tinha por Aécio, que o derrotara em 443 quando tentara conquistar a Sicília. Mesmo assim havia fortes rumores de que Genserico estava terminando seus preparativos e logo atacaria novamente, pois em sua opinião o império ficara muito enfraquecido pelas invasões dos hunos e não teria como resistir se fosse alvo de um novo ataque em massa. Somente a forte presença de Aécio no comando do exército romano estaria impedindo o rei vândalo de executar o seu projeto.

Qual o proveito de Valentiniano ao remover este último obstáculo às ambições de Genserico? Do ponto de vista político o covarde assassinato não faz sentido e do ponto de vista militar é uma catástrofe. A absurdidade política e militar do crime é tão evidente que o comentário mais comum na Itália é que Valentiniano agiu como um louco furioso “que decepa a sua mão direita com a sua mão esquerda”!

Portanto, qual poderia ser o verdadeiro motivo de tamanha insanidade? Suspeito que algo muito sórdido se esconde atrás da cena.

Aguardemos o futuro!


(in “Memórias Íntimas de Flavius Marcellus Aetius”)


Nota: Decorridos mais de quinze séculos, os verdadeiros motivos do imperador Valentiniano para o crime continuam sendo um mistério.



quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Post nº 14

NERO - O  IMPERADOR QUE INCENDIOU  ROMA  E  JOGOU  OS  CRISTÃOS  ÀS  FERAS
No ano 64 DC Roma sofreu enorme incêndio que destruiu metade da cidade e matou milhares de pessoas. O
povo acusou Nero e ele culpou os cristãos, mandando jogá-los às feras para apaziguar as massas
    

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Nero foi um dos piores e mais cruéis imperadores romanos e se dissermos que foi um "monstro moral" não estaremos longe da verdade. Todavia, poucos foram tão populares e tão amados pelo povo quanto ele, a ponto de não acreditar que tivesse morrido e surgirem impostores dizendo-se Nero à frente de revoltas populares buscando ter o trono de volta. Todos foram presos e executados, mas não foi excluído o fato de que a versão oficial da morte do tirano era duvidosa e difícil de convencer a quem estudasse o assunto com atenção, pois embora o suicídio fosse forma comum de briosos líderes romanos escaparem do opróbrio, Nero não era nem brioso nem era líder. Na verdade, era cafajeste da pior espécie que chegou ao poder com apenas dezoito anos de idade graças aos sórdidos crimes e intrigas políticas de sua mãe, a imperatriz Agripina, os quais incluiu o envenenamento do imperador Cláudio, seu tio e marido.

Ela era a irmã mais nova de Calígula e cresceu vendo todos os tipos de crimes e loucuras de que era capaz o seu monstruoso irmão, portanto não surpreende que, com tão exímio professor, ela assimilasse grande parte de suas perversas lições. Apesar de fria, cruel e assassina, Agripina era mãe extremosa. Além de fazer o filho imperador, preterindo o jovem príncipe herdeiro Britanicus, seu primo e enteado, deu a Nero os melhores mestres de Roma, o filósofo Sêneca e o erudito Bhurrus, possibilitando-lhe ter excelente educação e adquirir boa cultura, sobressaindo-se em artes e literatura para imensa satisfação dos sábios professores. Todavia, Agripina era pouquíssimo rigorosa em questões de disciplina e mimava excessivamente o filho, permitindo-lhe sempre satisfazer as vontades por mais incorretas e inapropriadas que fossem. Isto agravou a licenciosidade e perversidade de Nero, fazendo-a arrepender-se amargamente do erro de pô-lo no poder, pois ela logo seria a mais notória vítima do celerado imperador.

 A arrogância e ambição de Agripina passaram dos limites quando ela mandou cunhar
moedas imperiais com sua efígie ao lado da efígie do filho imperador


O início do seu reinado no ano 54 DC foi auspicioso, pois não só era gentil com todos como seguia à risca os conselhos dos seus ex-professores e agora sábios ministros Sêneca e Burhus. Mas sua ambiciosa mãe queria ser a soberana de fato e arrogantemente se intrometia nos negócios do Estado, contrariando as próprias ordens do imperador e dos seus ministros, o que logo a tornou impopular e detestada pelo filho que tudo devia a ela. Enquanto isso, a fama de Nero crescia como rapaz culto, atencioso, moderado e governante conscencioso. Porém a arrogância de Agripina não lhe dava sossego e ela chegou ao ponto de mandar cunhar moedas tendo não somente a efígie do imperador mas também a sua, como se ambos fossem co-governantes. Por fim Nero perdeu a paciência e, apoiado pelos ministros e pelo povo, a exilou em luxuosa mansão fora da cidade, proibindo-a de voltar a Roma.

Nero envenena seu irmão Britanicus em um banquete e manda cremar o
               cadáver sem demora. Ilustração de François Chauveau (séc. XVII)

Mas ela continuou a intrigar, e para castigar o filho ingrato aproximou-se do adolescente príncipe Britânicus, seu enteado e filho legítimo do falecido imperador Claudius. Por direito o imperador deveria ser Britanicus, o que fez Nero suspeitar de um complô liderado pela mãe para substituí-lo pelo irmão. Em consequência, o envenenou durante um banquete e disse aos convivas que o jovem tivera um ataque epilético, mandando que os servos o levassem para o seu quarto, mas na verdade para dar fim ao cadáver. Assim, enquanto o seu irmão assassinado era secretamente cremado nos fundos do palácio Nero continuava a se banquetear alegremente como se nada tivesse ocorrido.

O grande filósofo Sêneca foi a mais famosa e ilustre vítima do monstruoso Nero. Quadro "A Morte
de Sêneca" do pintor italiano Luca Giordano (séc. XVII)

A partir daí Nero desembestou e logo depois mandou matar a sua mãe Agripina a golpes de espada. Querendo libertar-se de toda e qualquer tutela que pusesse freio aos seus instintos perversos, livrou-se dos seus dois sábios ministros, mandando envenenar Burhus e ordenando que o idoso Sêneca se "suicidasse". Nem mesmo o jovem e brilhante poeta Lucano de apenas vinte e seis anos, maior poeta romano da época, escapou à sua sanha assassina, alguns dizem que por pura inveja do seu talento. Para tanto aproveitou a tola conspiração de alguns aristocratas idealistas, de cujo círculo Lucano fazia parte. Eles logo foram denunciados por sórdidos ex-escravos,  que tinham feito da espionagem e da delação lucrativo meio de vida a serviço do histriônico imperador, e o resultado é que tanto Sêneca, o maior filósofo, como Lucano, o maior poeta da época, foram obrigados a cometer suicídio no altar da monstruosa tirania.

Escultura em corpo inteiro da imperatriz Agripina apresentando Nero ao povo
como sucessor do recém falecido imperador Cláudio (54 DC)
         
Depois de assassinar o irmão, a mãe, e o que havia de melhor entre seus ministros e notáveis intelectuais, Nero entregou-se de corpo e alma à mais feroz devassidão e despotismo. Curiosamente, ao mesmo tempo em que assassinava o que havia de melhor na intelectualidade de Roma, ele posava como protetor das artes e da cultura, promovendo festivais de poesia, música, dança, teatro e esportes, dos quais muitas vezes participava como ator, músico e dançarino. O fato causou enorme escândalo na aristocracia, que julgava isso indígno de um simples nobre, que dirá de um imperador. Não satisfeito, passou a participar no hipódromo de corridas de bigas, como cocheiro, e de cavalos, como jóquei, coisas julgadas ainda mais indignas pelos cidadãos de respeito. Porém suas extravagâncias só fizeram aumentar sua popularidade, pois o povo começou a tê-lo como "um dos seus", sobretudo porque duplicou a ração de "pão e circo" que o governo dava às massas. Mas isso não impediu a sua popularidade de periclitar quando Roma foi assolada por grande incêndio que a destruiu pela metade em 64 DC. Para acalmar o povo, revoltado com sua incapacidade em lidar com a catástrofe e suspeitando ter sido ele o culpado, acusou os cristãos de serem os autores do incêndio e prendeu centenas deles, jogando-os aos leões no circo para divertir a populaça. Outros foram untados com óleo e queimados à noite em cruzes espalhadas pelas ruas para iluminá-las com tochas humanas.

Para aplacar as massas enfurecidas Nero culpou os cristãos pelo incêndio de Roma e mandou atirá-los
aos leões no circo. Quadro de Jean-León Gerôme (séc. XIX) 

Diz a lenda que durante essa brutal perseguição foram executados São Pedro e São Paulo, mas não há evidências históricas disso, e nem mesmo de que ambos estivessem em Roma na ocasião, embora fosse bastante provável. Fato é que Nero continuou sua sinistra trajetória política de crime em crime e a devassidão da sua vida privada chegou ao auge quando repudiou a sua virtuosa esposa Otávia e a exilou em uma ilha, onde poucas semanas depois mandou seus guardas matá-la e trazer-lhe a sua cabeça para presenteá-la à sua ciumenta amante Popeia. Nem bem o corpo de Otávia esfriara, ele casou com a sua linda e depravada amante, mas o casamento não durou muito: algum tempo depois, estando ela grávida, matou-a a ponta-pés dentro do palácio imperial após voltar de uma orgia completamente bêbado! Enquanto assim agia na esfera privada, matando o irmão, a mãe e duas esposas, na esfera pública ele se comportava com total despudor e irresponsabilidade, esvaziando o tesouro com gastos absurdos e não dando a mínima importância às contínuas guerras que o Império era obrigado a sustentar em seu imenso território e ao longo das suas extensas fronteiras.

Nero dava ao povo grandes espetáculos. Entre os mais populares estavam as corridas e às vezes
ele atuava como cocheiro

 Após mais de uma década de desmandos, crimes hediondos e corrução desenfreada, ele resolveu mexer com quem não devia: o Exército! Por razões obscuras, mandou executar o general Córbulo, um dos mais competentes e admirados generais da época, e o alto comando viu que Nero era um perigo não só para cortesãos e desafetos como para qualquer um capaz de lhe fazer sombra ou representar perigo à sua tirania. A conspiração tomou corpo e os generais Vindex, comandante das legiões da Gália, e Galba, comandante das legiões da Espanha, se revoltaram no início de 68 DC, esperando contar com o apoio do influente general Virgínio, comandante das poderosas legiões do Reno. Mas, muito aferrado à disciplina, ele discordou da revolta e ficou ao lado de Nero, atacando e derrotando Vindex, que se suicidou ou foi morto por seus próprios soldados. Sem saber o que fazer com a vitória, o general vitorioso foi imobilizado quando a soldadesca o proclamou imperador no lugar de Nero, e, dividido entre o dever e a ambição, ficou indeciso e buscou um acordo com Galba, rebelado na Espanha. Tudo indica que a morte de Vindex ao invés de enfraquecer os rebeldes os fortaleceu, pois a essa altura todos os altos oficiais viram que a anarquia se alastrava e nenhum deles estaria seguro no caso de uma guerra civil, pois Nero era muito popular nos baixos escalões da soldadesca pelos substanciais aumentos de salários que lhes dera. Isto os paralisou e preferiram não se arriscar, permitindo às legiões ibéricas do enérgico e decidido general Galba reiniciar a rebelião temporariamente interrompida. Todavia nada ainda estava decidido, pois Virgínio continuava indeciso, esperando para ver de que lado soprariam os ventos, e Nero poderia ter ficado no poder se tivesse um mínimo de habilidade e competência política, mas não tinha nenhuma das duas e entrou em pânico ao saber que os generais confabulavam entre si e faziam ouvidos moucos às suas ordens idiotas. 

Busto de Nero pouco antes da sua fragorosa queda e misterioso "suicídio"

Aproveitando-se da incompetência e do pânico de Nero face à confusão geral, pois ninguém sabia ao certo quem era leal ou quem era rebelde, os cidadãos dotados de consciência política, que odiavam o cruel tirano, espalharam o boato de que Galba chegara em marcha forçada ao norte da Itália com o apoio do grosso do exército do norte e entraria em Roma em breve. Os dias de Nero estavam contados! Isto fez com que o acovardado Senado decretasse a deposição do monstro e o declarasse fora da lei (junho de 68 DC). Achando que estava tudo perdido, a guarda imperial se acovardou, abandonou o palácio e trancou-se nos quartéis. Parentes, ministros, cortesãos, empregados e escravos também fugiram deixando Nero praticamente só, pois apenas sua serva e amante Áctea, com um fiel escravo e alguns ex-escravos, entre os quais o liberto Phaon, permaneceu ao seu lado.

A história diz que ele fugiu com os libertos para uma chácara que possuía nos arredores de Roma, encontrando-a deserta. Depois um dos libertos o teria ajudado a suicidar-se enquanto ele dizia: que grande artista perde o mundo! Mas é difícil acreditar que no geral panorama de covardia e omissão ex-escravos tenham se portado tão nobremente, arriscando-se a ficar com ele até o fim, quando os seus próprios ministros e familiares já lhe tinham virado as costas. A hipótese mais provável é que ele fugiu só com Áctea e o escravo para a casa de campo. Vendo-a deserta, o seu caráter covarde o pôs de novo em pânico e Áctea, prevendo que ele logo seria preso e ultrajado antes da inevitável execução, certamente o aconselhou a fazer algo inteligente.

A versão oficial é que ele se suicidou e seus fiéis servidores fizeram uma pira funerária onde o cremaram, de sorte que os guardas acovardados, que haviam se colocado à disposição do Senado tão logo o tirano fugira, saíram à sua procura e ao chegarem à chácara só acharam cinzas e restos humanos irreconhecíveis. Indagados por que haviam feito a cremação com tanta rapidez, os autores e testemunhas do fato disseram que apenas cumpriram as ordens do amo, pois ele temia que seu cadáver fosse vilipendiado e arrastado pelas ruas de Roma. Os oportunistas guardas e senadores tinham sido leais a Nero até poucos dias atrás e por isso não investigaram o assunto mais a fundo, preferindo dá-lo logo por encerrado. O rápido inquérito concluiu que os depoimentos eram convincentes e que os anéis calcinados encontrados nos despojos, inclusive o que continha o sinete imperial, eliminavam quaisquer dúvidas. Assim, confirmaram o suicídio do déspota e aclamaram Galba novo imperador. Mas outra versão diz que os guardas chegaram antes da cremação e puderam testemunhar que o cadáver era mesmo de Nero, por isso o Senado promoveu-lhe discreto funeral e depositou suas pretensas cinzas no túmulo da família. Porém é lícito pensar que isso foi inventado e o funeral foi encenado apenas para tirar as dúvidas dos recalcitrantes que se negavam a acreditar no suicídio do sórdido imperador após a aclamação de Galba.

Lutas de gladiadores eram o espetáculo preferido dos romanos e Nero as proporcionava em abundância
                                    às massas, por isso elas o adoravam. Quadro de Jean-León Gerôme (séc. XIX)

            A verdade é que o povão idolatrava Nero pela fartura de pão e circo que ele lhe dava e recusou-se a acreditar na sua morte. Para completar, algum tempo depois Áctea e o escravo sumiram e os boatos eram de que eles tinham ido se juntar ao saudoso imperador em seu esconderijo. Isto fez impostores dizerem-se Nero e reivindicarem o trono à frente de multidões rebeladas, mas foram presos e executados. Alguns meses depois o novo imperador foi assassinado em um motim militar e mais dois imperadores o seguiram em rápida sucessão, o que piorou as coisas ainda mais. Seguiu-se um ano de anarquia até que o enérgico e hábil general Vespasiano tomou o poder e restaurou a ordem abalada, quase que imediatamente dando início à construção do Coliseu, o maior e mais suntuoso circo que já existira (70 DC). Isto deu emprego à turba ociosa da capital e fez com que os arruaceiros logo esquecessem o seu pranteado ídolo.

Para dar vazão ao seu "gosto artístico", Nero mandou martirizar uma jovem cristã amarrando-a ao dorso
                            de um touro para reencenar o mito de Dirce. Quadro de Henryk Siemiradzki (séc. XIX)

Todavia, por incrível que pareça, o mito de Nero como "ótimo imperador" persistiu durante anos no meio do povo e vez por outra apareceram impostores dizendo-se Nero e arrebanhando centenas de seguidores, os quais eram logo dispersos pelas autoridades e quase sempre presos e executados. Isto originou debates entre historiadores, alguns, como Flavius Josefus, defendendo Nero, e outros, como Suetonius e Dion Cassius, atacando o monstruoso tirano. Porém, por mais boa vontade que se tenha, impossível é não concluir que ele foi um desastre como homem e como governante. Uma fria análise do seu caráter e das suas ações privadas mostra que ele foi um degenerado moral dotado da mais extrema perversidade, e um cuidadoso exame do seu governo e das suas ações públicas mostra que ele foi um dos piores e mais torpes imperadores que Roma teve em toda sua história. 
           
Porém, pondo de lado a história oficial e as críticas pró e contra para focar apenas na sua morte, há bons indícios de que o povão estava certo e que o suicídio de Nero foi uma farsa. As evidências mostram que ele seria o último sujeito do mundo a suicidar-se, pois gozava a vida a todo vapor. Apesar de ser covarde e monstruoso, ele tinha apenas trinta e dois anos, era boa pinta, culto, educado e muito simpático. Era também farrista inveterado e se lixava para as tarefas de governo, deixando-as aos cuidados de corruptos e incompetentes cupinchas, geralmente ex-escravos e gente da mais baixa extração social. A sua paixão era o teatro, pois tocava vários instrumentos musicais, cantava, recitava, dançava e representava! Também adorava competições esportivas, das quais às vezes participava e vencia por absurdas decisões de juízes aduladores. Em resumo: sendo um maníaco assassino destituído de qualquer tipo de sensibilidade humana e de mínimos freios morais capazes de levar o homem normal à autocrítica e ao arrependimento, Nero era o típico indivíduo monstruoso que jamais se suicidaria!

Guiando o seu próprio carro, o monstruoso imperador passeia por avenida de Roma
iluminada por cristãos transformados em tochas humanas

Exame detalhado da sua psicopática personalidade hedonística e assassina, insensível ao sofrimento alheio e ligada apenas aos gozos egoístas mais pervertidos e aos mais baixos apetites pessoais, dá suporte à hipótese de que, ao contrário do relato histórico, ao chegarem à chácara deserta ele e os seus comparsas mataram algum pobre diabo que perambulava nos arredores, vestiram-no com os trajes refinados do imperador, puseram-lhe nos dedos os anéis imperiais e o queimaram. Em seguida Nero, grande aficionado da arte dramática e que já atuara nos palcos como amador, disfarçou-se e foi para o esconderijo seguro que lhe indicaram. Levando bastante dinheiro e mantimentos, esperou a poeira sentar e Áctea ir com o bom escravo encontrá-lo. Depois viajaram incógnitos e juntaram-se como modestos atores a algum circo mambembe itinerante. Sempre atuando, devem ter chegado ao mar Egeu e desembarcado na Ásia Menor, onde a língua franca era o grego. Nero o falava bem e, com a experiência teatral que adquirira e o dinheiro que levava, não lhe deve ter sido difícil tornar-se ator razoável e dono de circo ambulante. As possibilidades de ser reconhecido eram nulas, pois nunca estivera na Ásia e na época não havia jornal, fotografia, rádio ou televisão; suas habilidades lhe permitiam representar o papel de homem do povo, com o qual sempre convivera bem, e, como os atores usavam máscaras quando atuavam, era impossível alguém da plateia reconhecê-lo. Ademais, chances de um romano seu conhecido ir ver o espetáculo de um circo no interior da Ásia eram de uma em um bilhão!

É só uma hipótese, mas é bem possível que Nero tenha vivido feliz como ator o resto da vida tendo sempre ao seu lado a dedicada Áctea e morreu velho de causas naturais. Talvez em pleno palco, como aconteceu ao famoso Molière muitos séculos depois!